4- Arrasados

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Arrasados

Descrição

Ian Kabra não consegue parar de pensar em certa garota de olhos verdes e cabelos castanho-avermelhados... Cansado de lutar contra seus sentimentos, ele decide ir para os Estados Unidos e se declarar a Amy. 

Contudo, alguém de seu passado invade a mansão Kabra, forçando Ian a aceitar que há coisas bem piores do que uma constrangedora paixão.

Sete meses após a caça às pistas

            Ian Kabra olhou-se no espelho, pigarreou e abriu seu coração.
            - Amy - ele começou. E então parou. - Amy. Amy, eu preciso... preciso lhe dizer que... - Ele parou novamente, esfregou o rosto e estufou o peito. - Amy Cahill, eu acho você interessante.
            Não, ela não era apenas interessante. Ela era... indescritível.
            Havia tantas coisas em Amy que estavam erradas, tantas coisas que  Ian não deveria gostar. Ela agora era mais rica que ele, mas ainda agia como se fosse pobre. E muitas de suas roupas eram de algodão em vez de ceda.
            Mas Ian percebeu que quase não se importava mais com isso. Encarou o espelho mais uma vez.
            - Sei que é um absurdo, mas não consigo mais guardar segredo. Amy, suas roupas parecem ter sido escolhidas por uma freira cega, seu irmão se comporta como o cruzamento de um macaco com um carro de kart, e você tem tanto traquejo social quanto uma pedra. Mas eu gosto de você, Amy. Muito. - Ele fez uma pausa. - Então, parabéns.
            A porta do quarto se abriu e a Natalie surgiu na entrada. Ian se afastou do espelho, porém, não conseguiu encarar  a irmã.
            - É mesmo? - Natalie perguntou, colocando a mão nos quadris. - Sério, Ian?
            - O quê? - ele disse, como se não houvesse nada de estranho em fazer um discurso em frente ao espelho antes de viajar para outro país para se declarar a uma ex-arqui-inimiga.
            Ele coçou a cabeça. Bem, era estranho. E mais ainda pelo fato de ter sido gravado pela irmã. Mas Ian tinha 16 anos e era um Kabra. Não era de se esperar que tivesse jeito para essas coisas? Não deveria saber as palavras certas para fazer Amy Cahill entender o que ele queria dizer: isto é, ele gostava dela, independentemente de alguns fatores que não vinham muito ao caso?
            - Você acha mesmo que ela vai se convencer desse jeito?- Natalie perguntou. - É melhor você nem ir.
            - Ian suspirou. Não havia nada de comum na vida de um Kabra, desde a mansão até os jatinhos particulares, passando por jantares reservados com a rainha da Inglaterra. Uma coisa, no entanto, era universal: irmãs menores podiam ser verdadeiras pestes.
            - Eu vou, Natalie - ele disse. - Já falamos disso antes.
            - Ok. Vá e faça papel de idiota - Natalie retrucou, dando de ombros.
            - Por que você não sai para comprar uma ilha particular ou coisa assim? - Ian estava irritado.
            Natalie arregalou os olhos e ficou boquiaberta por um instante.
            - Você sabe muito bem que não posso. Por que precisa ser tão cruel? - Ela virou e se afastou correndo, deixando Ian com a atenção dividida entre o corredor e o espelho.
            Ele ia para os Estados Unidos. Ia dizer a Amy Cahill o que sentia por ela. Não tinha feito isso antes porque achou que aqueles sentimentos  não iam durar. Mas duraram. Era ridículo, ele sabia. Aquilo tudo não tinha nada a ver com o Jeito Kabra de ser. A reação de Natalie era prova disso. Mesmo assim, não havia razão para não dar a notícia a Amy. Ela ficaria emocionada. E estava precisando de boas notícias em sua vida.
            Ian saiu do quarto e perambulou pelos ambientes majestosos e ricamente decorados da mansão Kabra. Lustres brilhantes pendurados no teto iluminavam os pisos polidos à perfeição. Obras-primas de parentes famosos decoravam as paredes: Van Gogh, Picasso, Degas e Rembrandt, para citar apenas alguns. Ian e Natalie praticamente cresceram num museu, contudo, em vez de se intimidarem, sentiam prazer em estar naquela casa. Eles não andavam na ponta dos pés quando passavam diante daquelas obras de arte. Eram seus donos e sentiam que as mereciam.
            Ou, pelo menos, que as tinham merecido antes. Ian não tinha mais tanta certeza de como as coisas funcionavam agora.
            Ele encontrou Natalie na sala de cinema vendo televisão. Sentou-se ao lado dela, deixando-se afundar numa das poltronas de veludo. O mordomo, trajando o fraque de costume, fazia pipoca num canto.
            - Bickerduff - Ian falou -, vamos fazer minhas malas esta noite. Vou para  os Estados Unidos em alguns dias.
            - Está bem, senhor. - Bickerduff levou pipoca aos irmãos.
            Natalie lançou para Ian um olhar que teria arrasado uma pessoa menos resistente.
            - Como eu disse, é melhor você aperfeiçoar seu discurso. Senão,  nem me daria ao trabalho  de ir se fosse você.
            - Ian a ignorou. Natalie tinha suas opiniões, mas isso não queria dizer que eram corretas.
            Ela não gostava de ser ignorada. Pegou o controle remoto e começou a pressionar os botões. Os canais foram se alternando com rapidez na tela do tamanho de uma parede.
            "Mais cereais..."
            "Doutor!"
            "Isabel Kabra..."
            "No centro da cidade..."
            - Espere! Volte! - Ian gritou.
            Natalie voltou para o canal que transmitia um telejornal. Ali estava o rosto da mãe deles. Os irmãos se inclinaram na direção da tela; o coração de Ian começou a bater acelerado, como se ele estivesse sendo perseguido.
            "Requintada personalidade do universo da filantropia e da arte, Isabel Kabra chocou o mundo no ano passado ao ser presa pelo assassinato dos americanos Hope Cahill e Arthur Trent. Acabamos de ser informados de que a senhora Kabra deixou o presídio em que estava encarcerada nos Estados Unidos e vai cumprir  o restante da pena em liberdade condicional, comandando a organização beneficente AjudaOperaMilagres. Pelos termos da condicional, Isabel Kabra não poderá sair da região de Boston, onde, há nove anos, cometeu os assassinatos."
            Natalie desligou a televisão e os irmão  ficaram sentados em silêncio por um tempo, absorvendo a notícia: a mãe deles tinha deixado a prisão. Ian gelou, sentindo os braços e o pescoço arrepiarem.
            Seis meses antes, pouquíssimas coisas fariam Ian Kabra hesitar diante da possibilidade de abrir vantagem na caça às 39 pistas, a busca do segredo que tornaria quem o encontrasse a pessoa mais poderosa do mundo. A disputa levara os participantes, entre os quais Ian e Natalie, além de Amy e Dan Cahill. aos confins do planeta, e em vários momentos quase tinha conduzido todos eles à morte.
            Isabel ansiava por aquele poder máximo, por isso, tinha feito coisas desprezíveis no afã de encontrar as pistas e vencer a disputa. Assassinara os pais de Amy e Dan; dera um tiro no pé de Natalie, a própria filha. Um tiro! Ian conhecia a mãe melhor do que qualquer outra pessoa, e mesmo ele sentia dificuldade em acreditar que isso tivesse acontecido.
            Mas a prova estava na cicatriz no pé de Natalie e no modo como ela agora se sentava, posicionando-o debaixo do corpo, como se quisesse protegê-lo.
            Isabel esperava que os Kabra fossem os primeiros a encontrar as pistas. Tinha treinado Ian e Natalie desde o nascimento para serem os astros implacáveis da família Cahill. E no começo Ian gostava disso. A caça às pistas era a prova máxima de inteligência e ousadia, e havia poucas coisas de que um Kabra gostava mais do que provar sua superioridade.
            A caça às pistas, porém, tinha sido mais impiedosa do que Ian previra. Com algo tão importante em jogo, os competidores começaram a enxergar uns aos outros como nada além de obstáculos, em vez de seres humanos de carne e osso. Esperava-se que Ian e Natalie agissem de acordo com essa visão, e os dois entraram em contato com um lado da mãe que ninguém mais deveria ser forçado a conhecer. Ela quase os transformara em assassinos. E, embora Ian não fosse propriamente um santo, sabia que não era um assassino.
            O processo tinha levado tempo - o brotar de uma consciência a partir do nada não é fácil -, mas Ian e Natalie descobriram que nenhuma recompensa justifica matar. Assim, eles dois, bem como os outros primos, deram suas pistas a Amy e Dan Cahill - duas crianças, mas os únicos aos  quais era possível entregar um poder daquela natureza. Aqueles Cahill não tinham motivações escusas; eles não queriam  dominar o mundo. Ian desconfiava que só continuaram a participar da caça às pistas para impedir que qualquer outro ganhasse, qualquer um que fosse usar o poder para o  mal. E também para dar à sua falecida avó razões para se orgulhar deles, algo tão típico dos Cahill que Ian achava quase insuportável.
            Isabel ficou furiosa com Ian e Natalie. No final da caça às pistas, ela e o marido deserdaram os dois filhos. Tinha sido extremamente desagradável, e Ian estremeceu ao lembrar-se de tudo. Não era normal uma pessoa sentir-se assim em relação à própria mãe. Mas ele duvidava muito de que houvesse outras mães como Isabel Kabra no planeta.
            -Senhor - disse Bickerduff, interrompendo os pensamentos aterrorizantes de Ian. - Sua bagagem já foi levada ao seu quarto.
            - Por quê? - o jovem quis saber.
            - Para sua viagem aos Estados Unidos, senhor.
            É claro! Ele ia aos Estados Unidos, para o mesmo lugar em que sua mãe estava, o mesmo lugar em que Amy e Dan estavam. Dois Cahill e dois Kabra em Boston. Se Amy soubesse que Isabel tinha sido libertada, talvez não concordasse em vê-lo. Mas que diferença faria o fato de Isabel estar ou não em liberdade? Ian não deixaria de ser filho da mulher que tinha assassinado os pais de Amy. A sensação era de que havia uma pedra em seu estômago. O charme dos Kabra era impressionante, porém, nem mesmo Ian tinha certeza de que isso pudesse superar uma condenação por homicídio.
            - Bickerduff, acho que não vou.
            -Está bem, senhor - disse o mordomo.
            Natalie se levantou da poltrona e cruzou os braços no peito quase como se estivesse dando um abraço em si mesma.
            - Será que vamos ter nossa mesada de volta?
            - É nisso mesmo que você está pensando?
            Se bem que, agora que a irmã tinha tocado no assunto, Ian não acharia nada mal voltar a ser benquisto pelos Kabra. Antes da caça às pistas, nunca lhes faltara nada, mas, depois que eles se revelaram uma decepção tão grande para os pais, tinham empobrecido. Como covencedores daquele desafio, receberam míseros 2 milhões de reais cada, e Ian tinha a impressão de que Natalie andava se servindo da parte dele. Ian era um Kabra, e desde a infância sabia de cor o telefone do corretor de ações da família. Ele estava convertendo seus 2 milhões em um valor muito mais respeitável. Não que por ora fosse dizer isso a Natalie.
            - E você, está pensando em quê? Em como Amy Cahill vai ficar triste? - Natalie perguntou.
            Ian parou por um instante. Amy ficaria triste ao ver Isabel fora da prisão. E precisaria de alguém para confortá-la, alguém mais maduro que seu irmão ou aquela babá, Nellie. Precisaria dele para ampará-la. Se Ian se visse em maus lençóis, com certeza apreciaria o apoio de uma pessoa tão madura e com tanto traquejo quanto ele próprio.
            Bickerduff reapareceu na porta.
            - Senhor, sua bagagem foi guardada.
            - Por quê? - Ian indagou. - Preciso fazer as malas. Vou para os Estados Unidos logo! Vá buscá-las, Bickerduff. Arrumaremos tudo hoje à noite.
            - Está bem, senhor. - disse Bickerduff, dando meia-volta e saindo da sala outra vez.
            - Você sabe que ela não vai querer ver você - Natalie falou. - Foi nossa mãe que...
            - Não fale - Ian a interrompeu.
            Mas Natalie tinha razão. A libertação provisória de sua mãe tinha atrapalhado seus planos. Amy talvez pensasse que ele estava lá a serviço de Isabel, mas não era nada disso, não mesmo. Amy saberia que não era, certo? Ela sabia o que Ian tinha feito no final da caça às pistas, sabia do que ele tinha aberto mão.
            - Alguém precisa falar - Natalie disse, mexendo-se na poltrona. - É nisso que estou pensando, na realidade. Às vezes me pergunto como estariam as coisas se ela não tivesse sido presa. Se não tivesse... provocado aquele incêndio.
            - Natalie, pare. Pare com isso.
            Eles não deviam falar a respeito. Falar sobre aquele assunto o tornaria real, destacaria o caráter horrendo dos acontecimentos. Se os irmãos Kabra continuassem fingindo que aquilo não tinha acontecido, poderiam fazer de conta que seus pais estavam longe, à procura de alguma obra de arte ou velejando num arquipélago tropical.
            - Não, só estou dizendo que às vezes fico pensando. Fico imaginando como seria se ela fosse uma dessas mães que levam a filha à aula de balé, que torcem pelo filho numa partida de polo; uma mãe que não espera tanto das pessoas.
            Os dois fizeram silêncio. Ian jamais admitiria que às vezes sentia o mesmo. Só às vezes. Não... em grande parte do tempo.
            - Muito de vez em quando, sinto saudades dela. Às vezes eu gostaria que ela fosse diferente.
            - Então... - Ian respondeu. - Nesse caso, não teria sido você.
            - Não gosto de mim mesma o tempo todo - Natalie admitiu.
            - Eu também não gosto de mim sempre - Ian disse.
            Um silêncio se instalou entre eles. Um Kabra admitindo que não gostava de si mesmo, deixando de pensar que todos os astros tinham se alinhado para conduzi-lo à grandeza, era algo inusitado. Mas é verdade, Ian refletiu.
            - Bickerduff! - ele chamou o mordomo novamente.
            - Sim, senhor.
            - Não vou mais - Ian disse. - Cancele meu voo.
            - Está bem, senhor.
            Dessa vez, Bickerduff quase conseguiu sair da sala.
            - Não, espere.
            Ian não sabia o que pensar da mãe, de Natalie, nem  dele próprio em boa parte do tempo, mas tinha certeza de algumas coisas. Primeiro: queria ir a Boston. Segundo: era um Kabra, e os Kabra conseguiam o que queriam.
            -  Bickerduff, busque meu paletó.
            Se ele ia viajar a Boston, seria com estilo.


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